Uma análise jurídica demonstra que a acusação por desacato, por mais que pareça evidente, precisa seguir determinados padrões para compatibilizar-se com a estrutura democrática.
Por Renan Salles (OAB/RJ 221.946) e Flávio Guercio (OAB/RJ 218.608)
Recentemente, a mídia noticiou que o empresário Neymar da Silva Santos teria recebido voz de prisão por supostamente desacatar uma autoridade pública durante uma inspeção legal na propriedade do filho, no município de Mangaratiba, RJ[1]. De acordo com as notícias veiculadas, construções realizadas no terreno estariam infringindo diversas normas ambientais.
Apesar de imediatamente liberado, o pai do jogador Neymar ainda pode ser acusado criminalmente, uma vez que o crime de desacato é considerado de ação penal pública incondicionada. Em outras palavras, não há necessidade concreta de representação do ofendido, bastando a atuação do Ministério Público ou da Polícia Judiciária para dar início e seguimento a eventual procedimento investigatório.
Neste post você irá encontrar:
1. ASPECTOS LEGAIS DO CRIME DE DESACATO
A redação do crime, previsto no artigo 331 do Código Penal, comina uma pena de detenção de seis meses a dois anos, ou multa. A previsão atual, que está no Código desde sua promulgação, em 1940, durante a ditadura do Estado-Novo, segue um padrão de criminalização dos atos atentatórios aos funcionários públicos, cuja origem, no Brasil, remonta às Ordenações Filipinas impostas pela Coroa Portuguesa a partir de 1603.
Ao longo da história, no entanto, as mudanças estruturais na sociedade brasileira, sobretudo, a partir da chegada do Estado Democrático de Direito, com a Constituição da República de 1988, fazem divergir o âmbito de extensão do crime de desacato.
Por certo, ofender uma autoridade pública durante o Império ou a ditadura militar possuiria conotação e sanção distinta do mesmo ato praticado hoje, na vigência da uma Constituição que garante a todos o direito à liberdade de expressão, aí incluída a faculdade de tecer críticas às autoridades.
2. INCONVENCIONALIDADE DO CRIME DE DESACATO?
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 1995, emitiu relatório apontando a incongruência da criminalização do desacato em correlação com o direito à liberdade de expressão[2].
Da mesma forma, no ano de 2000, em relatório específico sobre o tema da liberdade de expressão, a Comissão assentou que os Estados que criminalizam o desacato violam, em certo grau, o princípio da igualdade, ao prever uma sanção privilegiada ao funcionário público em detrimento do particular.[3]
Para não causar confusões indevidas, ressalta-se que a Comissão e os doutrinadores que seguem o mesmo entendimento, não defendem, por óbvio, a descriminalização de ofensas contra servidores públicos, muitas vezes saturados por péssimas condições de trabalho, como no caso de policiais que atuam em áreas de risco, mas a aplicação a estas ofensas das mesmas infrações já previstas a qualquer pessoa.
Nesse sentido, alguns Ministros do Superior Tribunal de Justiça, assim como juízes de primeiro grau e desembargadores, passaram a considerar a inconvencionalidade do crime. Em outras palavras, o crime do art. 331 do Código Penal não teria sido recepcionado pela Convenção Americana de Direitos Humanos, do qual o Brasil é signatário.
Segundo o Ministro Ribeiro Dantas[4], no julgamento do RESP nº 1.640.084/SP, de 2017, “não há dúvida de que a criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado - personificado em seus agentes - sobre o indivíduo".
Mais tarde, entretanto, o próprio Superior Tribunal de Justiça, por meio da Terceira Seção da Corte, reviu o posicionamento mencionado acima, atestando que o crime de desacato não seria incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos.
3. ATUAL ENTENDIMENTO SOBRE O CRIME DE DESACATO
Com a divergência de entendimentos na jurisprudência, criou-se, tanto aos jurisdicionados quanto aos atores do sistema penal, um ambiente de insegurança jurídica relativo à própria existência do desacato no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, cumprindo sua função pública, o Conselho Federal da OAB apresentou ao Supremo Tribunal Federal a ADPF nº 496/DF, demandando da Corte o controle concentrado de constitucionalidade sobre o tema, de modo a firmar um único entendimento.
A partir do voto do Relator, o Ministro Luís Roberto Barroso, o STF entendeu pela recepção constitucional e convencional do crime de desacato à autoridade, compatibilizando-o ao princípio da liberdade de expressão e da igualdade. Para o relator, a questão principal reside no bem jurídico protegido pelo crime do art. 331 do Código Penal, que é o próprio exercício da função pública, e não o agente público, considerado em sua honra subjetiva.
“56. Não basta, ademais, que o funcionário se veja ofendido em sua honra. Não há crime se a ofensa não tiver relação com o exercício da função. É preciso um menosprezo da própria função pública exercida pelo agente. E, mais, é necessário que o ato perturbe ou obstrua a execução das funções do funcionário público.”
De todo modo, a importância da decisão do Supremo Tribunal Federal não reside apenas na aceitação da recepção constitucional do desacato, mas no estabelecimento de limites interpretativos, decerto restritivos, para que eventual imputação não atente contra a lógica democrática empreendida pela Constituição de 1988.
“58. Como já referido anteriormente, os agentes públicos em geral estão mais expostos ao escrutínio e à crítica dos cidadãos, devendo demonstrar maior tolerância à reprovação e à insatisfação, sobretudo em situações em que se verifica uma tensão entre o agente público e o particular. Devem ser relevados, portanto, eventuais excessos na expressão da discordância, indignação ou revolta com a qualidade do serviço prestado ou com a atuação do funcionário público.
59. Assim, o tipo penal do art. 331 do Código Penal deve ser interpretado restritivamente, a fim de evitar a aplicação de punições injustas e desarrazoadas”.
4. CONCLUSÃO
O tipo penal do desacato, portanto, deve ser lido de maneira exclusivamente restritiva, para que a crítica razoável, ou mesmo aquela que se exceda de maneira não violenta ou agressiva, não resulte em uma sanção injusta do ponto de vista do direito à crítica.
Para além, não se pode tornar o bem jurídico-penal protegido pela norma em mera extensão da honra subjetiva do agente, já abarcada pelos delitos comuns contra a honra (injúria, calúnia, difamação). É preciso, mais do que isso, que a ofensa seja excepcionalmente grave e atentatória à função pública do agente.
Toda essa digressão para tentar mostrar que, mesmo com evidências, não é tão simples acusar alguém de desacato à autoridade, como parte da mídia já concluiu acerca da conduta - certamente reprovável - do empresário Neymar da Silva Santos.
De qualquer forma, cabe ao Ministério Público e, depois, ao Juiz, decidir, com base no direito ao contraditório, se o pai do jogador do PSG atentou, e de maneira grave, contra o munus público da servidora ofendida ou se agiu, de maneira legítima, na defesa do seu direito à crítica.
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