Trecho de artigo publicado no livro Ciências Criminais III: vulnerabilidades, gênero e outros temas contemporâneos, pela Editora Mente Aberta, em 2023 (pgs. 135-146).
Por Renan de Salles Poliano Pereira, advogado criminalista, sócio do Salles & Guercio Advogados, especialista em Direito Penal Empresarial e Criminalidade Complexa (IBMEC), graduado em Direito pela UFRJ; Maria Luiza Carpizo Fernandes da Costa, advogada criminalista, associada ao escritório Moraes Pitombo Advogados. Mestre em Direito Penal e Criminologia pela UERJ, graduada em Direito pela UFF; Pedro Henrique Mattos de Oliveira Santos, advogado criminalista, associado ao Tórtima Advogados Associados, especialista em Direito Penal Empresarial e Criminalidade Complexa (IBMEC), graduado em Direito pela UFRJ.
O texto é parte de uma pesquisa maior acerca do fenômeno dos megaprocessos criminais, suas estruturas, seus efeitos jurídico-políticos e a suas contradições com o atual modelo processual brasileiro. Trata-se de tema relevante na contemporaneidade, muito em função da expansão da utilização dos modelos processuais agigantados no Brasil, sobretudo a partir da Operação Lava Jato.
Visto que, hoje, a Operação Lava Jato, como um todo, carece de legitimidade e confiabilidade pública, decorrente do uso antiético e até ilegal da Justiça Criminal, além das inúmeras violações de direitos fundamentais, o tema torna-se ainda mais importante. Afinal, os megaprocessos foram fundamentais para toda a Operação e suas infinitas e desconexas ramificações, além de servirem como pano de fundo para as já evidentes intenções políticas, as quais, no cenário atual, são tão cristalinas quanto às águas dos lençóis maranhenses.
1. MEGAPROCESSO COMO SUBPRODUTO DA CRIMINALIDADE COMPLEXA E ECONÔMICA
Embora importantes autores tenham apontado a danosidade social das condutas praticadas pela elite econômica (FRIEDRICHS, 2009), foram os estudos de Edwin Sutherland (1999), realizados na primeira metade do século XX, que inauguraram, pelo prisma funcionalista e em contraposição ao positivismo etiológico (ANITUA, 2008), a análise criminológica dos chamados white collor crimes nos EUA.
Apesar de não adentrar na questão dogmática, Sutherland (1999) já apontava uma problemática probatória, muito relacionada com a pouca preparação das agências de repressão, uma vez que historicamente constituídas com foco na criminalidade cometida pelas camadas mais baixas da hierarquia social capitalista (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004).
Ao longo do tempo, a criminalidade econômica ganhou novos aspectos, relacionados ao avanço da globalização, à financeirização da economia, a maiores mecanismos de participação privada no Estado, dentre outros fatores (MARTIN; SANCHEZ; GOMES-ALLER; BARRANCO, 2018). O avanço da criminalidade econômica e da sua consequente repressão demandou grande esforço intelectual para associar os aspectos únicos do direito penal econômico com a dogmática já sistematizada do direito penal clássico.
Neste estudo, interessa-nos o debate acerca de um fenômeno específico que se desenvolveu ao longo da história de repressão à criminalidade econômica e complexa: os megaprocessos criminais. Mais do que isso, pretende-se demonstrar como os processos agigantados ainda necessitam de uma maior teorização, dado que passaram a fazer parte da realidade processual penal no Brasil.
Portanto, o objetivo não é – até pela limitação do meio e das pesquisas empíricas – destrinchar o fenômeno em todas as suas particularidades, mas apresentar as contradições práticas dos megaprocessos com o modelo de legalidade constitucional, em especial no campo probatório.
Antes, contudo, é preciso contextualizar os megraprocessos, a partir de uma relação dialética entre a história concreta do fenômeno e sua teorização. Até porque, do ponto de vista material, os fenômenos jurídicos, políticos, sociais e econômicos precedem historicamente suas teorizações, assim como as teorizações influem na reprodução dos mesmos fenômenos. Desse modo, por uma questão metodológica, torna-se pertinente analisar, de maneira crítica, o surgimento do fenômeno histórico, para posteriormente descrever os estudos teóricos de Ferrajoli (2010) acerca dos megaprocessos a partir de uma visão garantista.
2. DA MANI PULITE À LAVA-JATO: A REALIDADE OPERATIVA DOS MEGAPROCESSOS CRIMINAIS
Pela magnitude de seu alcance e pelos diversos desdobramentos políticos que produziu, a Operação Mani Pulite, iniciada em 1992, na Itália, constitui objeto de estudo obrigatório quando se quer compreender o modelo dos megaprocessos e o combate à criminalidade econômica. Tal operação emergiu diante de um cenário de completa deslegitimação do sistema jurídico-político italiano, resultando em o inúmeras prisões e condenações de administradores locais e parlamentares, proporcionando um completo redesenho do quadro político no país. A compreensão da época era de que a influência dos investigados, muitos integrantes ou afetos da máfia, propagava-se pelos mais diferentes setores da vida política e institucional na Itália e, assim, se os processos não adquirissem determinadas características próprias, seria certa a impunidade dos réus e a consequente desmoralização das agências de controle.
No ano de 2004, o então juiz federal Sérgio Moro escreveu um artigo intitulado “Considerações sobre a mani pulite” (MORO, 2004), no qual expunha as principais características da famosa operação italiana e destacava os resultados políticos por ela alcançados, quais sejam: “2.993 mandados de prisão, 6.059 pessoas investigadas, incluindo 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares”. No artigo, o ex-juiz federal manifesta-se abertamente favorável à adoção de medidas inconstitucionais e repressivas como mecanismos necessários ao enfrentamento da corrupção, entre elas a estratégia de pressionar suspeitos a confessar crimes e apontar outros envolvidos, a prisão antecipada como mecanismo de coerção e o recurso maciço ao apoio da opinião pública, de modo a criar julgamentos e condenações fora do ambiente judicial.
Fica evidente que a operação fez vasto uso de técnicas que subvertem as balizas do sistema acusatório, substituindo a obrigatória atribuição do ônus da prova à acusação por confissões fundamentadas em ameaças, desconhecimento e medo (SANTORO; TAVARES, 2020). Ocorre, nesse contexto, a destruição do sistema de vínculos objetivos que funda o Estado Democrático de Direito. A estrutura processual conforma-se com o resultado obtido a qualquer modo, o que, na prática, aniquila o sistema acusatório, pois neste último o que deve prevalecer é a defesa dos direitos fundamentais do acusado contra a possibilidade de arbítrio do poder de punir (PRADO, 2005).
Outro aspecto relevante a ser destacado sobre a Mani Pulite foi a completa reordenação do quadro político italiano após sua eclosão, a evidenciar que foi, de fato, a razão política, e não a razão jurídica, que conduziu a operação.
Por fim, Sérgio Moro finaliza seu artigo prenunciando que, no Brasil, apresenta-se terreno fértil para ação judicial semelhante (SANTORO; TAVARES, 2020). Contudo, o autor não deixa de ressaltar como indispensável, para concretização desse projeto, o protagonismo dos chamados “juízes de ataque”, que, segundo ele, adotam uma postura ativa e usam a lei para reduzir a injustiça social (MORO, 2004).
O prenúncio foi ouvido e, mesmo com as limitações constitucionais e processuais, a Operação Lava Jato – e seus inúmeros e desconexos desdobramentos – foi responsável, segundo a plataforma do Ministério Público Federal, só até o ano de 2019, por: 1.161 pessoas denunciadas, 560 mandados de prisão preventiva e temporária e 460 acordos de colaboração premiada.
Mais um ponto necessário à análise, em razão da semelhança com a experiência brasileira, sem dúvida, é a centralidade das confissões obtidas, explicitamente, a partir da pressão exercida sobre o acusado preso. No aludido texto, o ex-ministro da justiça, ao citar o juiz italiano Piercamillo Davigo, o qual expressa que, se a “[...] corrupção envolve quem paga e quem recebe”, não há como descortinar crime algum “se eles se calarem” (MORO, 2004), indica a linha político-criminal de utilização massificada da colaboração processual.
Por certo, o instrumento da colaboração premiada se tornou o meio de prova fundamental para dar forma aos anseios jurídicos e políticos almejados, tanto na Itália quanto no Brasil, sobretudo por oferecer a possibilidade de saída dos limites do fato criminoso previamente investigado, impondo que o delator apresente fatos novos, na linha do interesse acusatório (obrigatoriedade excluída após edição da Lei 16.964/19).
Sucede que a massificação de utilização da delação, como ferramenta político-criminal, criou cenários também massificados de informação, somando-se a isso as informações obtidas através de outros meios de obtenção de prova, os quais servem para corroborar as alegações do colaborador. O objeto dos fatos investigados, portanto, expandiu-se a ponto de não mais importar como fundamento principal da persecução. O importante, como atestou e tentou reproduzir o ora Senador Moro, seria, no final das contas, o afastamento de certas figuras políticas da cena institucional, redundando em contradições evidentes no modelo de legalidade processual, constituído para fins de proteção do indivíduo contra o arbítrio estatal.
O objetivo, de fato, foi realizado. Sérgio Moro e a equipe da Operação Lava-jato, agindo de maneira ilegal e em completa inversão da lógica do sistema acusatório, como comprovam as conversas vazadas na imprensa, conseguiram, de certa forma, afastar políticos tradicionais, a partir de denúncias, prisões e narrativas frágeis. Ironicamente (ou não), chegamos ao ponto em que - como os não tão ingênuos já imaginavam - a liturgia exige chamar o ex-juiz da Lava Jato de Senador Sérgio Moro.
De todo modo, claro está, a partir do paralelo realizado, que quando um processo não tem como objeto de investigação um fato criminal determinado, mas, pelo contrário, pretende investigar toda uma fenomenologia criminal, em todas as suas complexas dimensões políticas e sociais, ele se transforma, fundamentalmente, em uma investigação político-historiográfica da realidade, assumindo dimensões exorbitantes, em detrimento de um esquema garantista de legalidade estrita e de estrita submissão à jurisdição (FERRAJOLI, 2010).
Nota-se que o fenômeno brasileiro, com suas particularidades, é claro, está intimamente relacionado ao fenômeno italiano. Nesse diapasão, a direção que Ferrajoli apresentou, a partir da experiência vivenciada com a Operação Mãos Limpas, na Itália, dá conta de apresentar descrições teóricas fundamentais à compreensão global dos megaprocessos, mesmo com as singularidades legislativas de cada nação.
3. O FENÔMENO DOS MEGAPROCESSOS PELA ÓTICA GARANTISTA
Como se sabe, Luigi Ferrajoli (2010) foi o responsável por identificar e descrever o fenômeno dos maxiprocessos, demonstrando que tais modelos se manifestam através de um denominado direito penal da emergência, no qual haveria a prevalência da ideia de razão de Estado sobre a razão jurídica como critério norteador da persecução penal. É dizer que a natureza política dos megaprocessos sobrepõe-se ao caráter eminentemente jurídico que deve permear qualquer decisão judicial democrática. Para o autor, a força da legitimidade política nesses casos mostra-se ainda mais elevada, pois se reveste de um alegado caráter “democrático” ou “constitucional”, sendo que a mutação dos meios legais é apresentada não como praxe rotineira de governo (Estado absoluto), mas sim como medida excepcional para afrontar o risco de sua ruptura.
É justamente o caráter complexo da estrutura processual proposta e a legitimação política das decisões de exceção adotadas nesse contexto que possibilitam uma inequívoca instrumentalização dos megaprocessos e o seu uso como ferramenta de guerra política. A dificuldade de se comprovar determinadas condutas criminosas que lesionam bens jurídicos supra individuais (por exemplo, lavagem de capitais e corrupção) abre caminho para uma instrumentalização ainda maior desses processos, que passam a se estabelecer como substitutivos dos meios tradicionais de disputa política. Assim, o Direito é utilizado para alcançar determinados fins políticos, estranhos à arena jurídica tradicional.
Por meio do discurso da impunidade nos delitos econômicos, vendido pela cobertura midiática massiva (SANTORO; TAVARES, 2019), retoma-se a lógica conflituosa do amigo/inimigo que, por sua vez, é absolutamente incompatível com a natureza da jurisdição – a qual reclama a imparcialidade com o afastamento do julgador da função de acusar. Ao contrário do modelo clássico, no qual o réu é presumido inocente, há, aqui, uma significante transformação do paradigma, colocando o acusado como inimigo social. No que se refere ao magistrado, ele abandona sua posição de inércia – e de garante – para atuar como um agente de segurança pública, amigo da sociedade, na luta contra a execrável criminalidade organizada.
Desaparece, portanto, nessa estrutura espetacularizada e agigantada de processo, o diálogo, a construção dialética da solução para o caso penal a partir da atividade das partes, sendo substituída por um discurso dirigido pelo juiz, construído para agradar maiorias de ocasião, em detrimento da função contramajoritária de concretizar os direitos fundamentais (CASARA, 2015).
Pela estrutura delineada, fica evidente que o modelo dos megaprocessos demonstra indisfarçada tendência a flexibilizar direitos e garantias fundamentais em nome da rigidez no combate à criminalidade financeira e organizada. Essas flexibilizações exprimem-se de diversas formas, afastando-o do que se designa como devido processo legal-constitucional, isto é, um processo originalmente fundado na incerteza, que encontra validade formal no respeito ao contraditório e à ampla defesa, e que reclama a produção de certeza como meta, tendo a verdade como indicador epistêmico, em harmonia com preceitos garantidores da dignidade da pessoa (PRADO, 2014).
No que se refere à mutação do modelo clássico de legalidade, as chamadas razões de Estado sobrepõem-se em uma estrutura marcantemente antijurídica, pois recorrentes as investigações sobre os réus, e não sobre os crimes (FERRAJOLI, 2010). Desse modo, ocorre uma subjetivação do julgamento criminal, impondo punição não pelos fatos delituosos, mas sim pela personalidade criminosa do autor (pune-se não por aquilo que se fez, mas por aquilo que se é). Há uma inaceitável pessoalização da justiça criminal, destinada a perseguir determinados personagens, sobretudo os de relevância no cenário político.
Resgata-se, no designado processo penal de emergência/exceção, uma antiga e nunca abandonada tentação totalitária, qual seja: a concepção ontológica do crime como mal, algo pecaminoso, e não apenas proibido, contrário a lei. O discurso da impunidade, vastamente veiculado nos meios de comunicação de massa, conduz parcelas significativas da população a culpabilizar os supostos corruptos pelas mazelas de um sistema corrompido, admitindo a ideia fantasiosa de que o efetivo enfrentamento a esse mal somente é possível por meio da restrição de garantias individuais.
Diante do cenário desenhado, o modelo ideal de processo concebido como entidade epistêmica (PRADO, 2014), pois direcionado à obtenção de um conhecimento seguro, não raro se demonstra distante da realidade operativa dos megaprocessos. Não se constrói um verdadeiro processo de informação (BECCARIA, 2015), consistente na investigação imparcial do fato penalmente relevante. A arena processual (seja na fase preliminar, seja na processual em sentido estrito) transforma-se em território hostil para o investigado/acusado, o qual tem, no juiz, a figura de seu principal antagonista.
Ao se contrapor à figura do acusado, o magistrado assume a função de protagonista na disputa processual, cabendo a ele perseguir a certeza de um réu culpado já estabelecida antes mesmo da construção dialética dos argumentos das partes. A imparcialidade do órgão julgador deixa de existir, impossibilitando um efetivo contraditório e o respeito ao devido processo legal. A rigor, dentro dessa confusão dos sujeitos jurídicos processuais, no modelo dos megaprocessos, viola-se não somente a imparcialidade do juízo, mas a própria concepção de processo, já que este se estabelece a partir da contraposição dos argumentos das partes perante um terceiro imparcial.
Fica claro, portanto, que a estrutura dos megaprocessos demanda a substituição da legitimação jurídica do procedimento processual penal – emquanto conjunto de técnicas direcionadas ao controle racional da atividade persecutória do poder estatal – por uma legitimação política, direcionada à supremacia da tutela do Estado e de seus objetivos (MALAN, 2019). Com efeito, a função precípua da atividade processual penal de verificação epistêmica do fato supostamente criminoso, a partir da preservação dos direitos fundamentais do acusado, no modelo apresentado, aparece tão somente de forma contingencial.
4. O DESLOCAMENTO DO EIXO INFORMATIVO DO PROCESSO PARA A INVESTIGAÇÃO E OS CONSEQUENTES PREJUÍZOS AO DIREITO DE DEFESA
O processo penal como método de apreensão da verdade, no Estado de Direito, deve atender a parâmetros constitutivos da lógica democrática. O ponto de partida, portanto, é a presunção de inocência, a qual tão somente por meio do processo poderá ser superada. Nesse sentido, a máxima nulla pena sine iudicio significa que a legitimidade da condenação criminal é fruto da legitimidade da forma processual penal. Seguindo esse raciocínio, entende-se a verdade como indicador epistêmico, o qual figura como funcional para a configuração de meta processual, ao passo que impõe limites éticos, políticos e jurídicos de apreensão e justificação da verdade no processo.
Não seria absurdo afirmar que, colhidos determinados dados sobre o fato, sem a presença do efetivo contraditório, possa se chegar a uma verdade empiricamente referenciada por tais dados. Para Santoro e Tavares (2017), no entanto, “o problema está exatamente na idoneidade dos dados”. Afinal, o que caracteriza o meio de prova ou meio de obtenção de prova, em realidade, é seu rito, e não seu conteúdo.
Logo, um dos corolários do processo democrático de partes é o contraditório, sustentado por um juiz imparcial e equidistante o suficiente para formar sua convicção com base, tão somente, no produto dialético das alegações acusatórias e defensivas. Mais do que uma garantia individual, que permite ao acusado influenciar diretamente na decisão, o contraditório possui um importante valor heurístico (BADARÓ, 2019), permitindo, a partir da contraposição de argumentos das partes, a ampliação do conhecimento produzido pelo processo. Trata-se, portanto, não apenas de uma escolha política do legislador, mas, acima de tudo, de uma garantia epistemológica da busca pela verdade.
A verdade como indicador epistêmico, nesse contexto, deve obedecer a todos os regramentos constitutivos do direito de defesa. Todavia, os meios de obtenção de prova no âmbito dos megaprocessos vêm subvertendo esse modelo constitucional-democrático. Isso porque são produzidos, em geral, antes do início da instrução processual, sem a possibilidade de ocorrer um efetivo contraditório, apenas um contraditório diferido.
Em função da impossibilidade de contraditório efetivo, a prova é levada aos autos na forma de prova documental, transloucando seu sentido originário para compatibilizá-la ao modelo dialético. Contudo, a diferença dos níveis de contraditório evidencia-se justamente no momento de valoração da prova. Um processo penal acusatório, coordenado por um magistrado imparcial e que busca construir seu convencimento com base no contraditório, deve buscar a eficiência epistemológica da sentença, considerando os diferentes níveis de contraditório em concordância com seu grau de efetividade (LOPES JR., 2016).
As provas constituendas, nas quais o contraditório estaria centrado com maior intensidade, possuem, assim, uma base epistemológica mais sólida, sendo, portanto, mais eficientes na busca da verdade dentro de uma estrutura dialética. Essa forma de produção de provas, submetida sempre ao contraditório, é baseada no direito ao confronto, no qual se impõe uma rigidez à forma oral, disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos, no artigo 8.2.f, assegurando o “direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos.”
Dessa forma, uma distinção pode ser feita entre provas produzidas em contraditório e provas submetidas ao contraditório. Tal fato implicaria uma comparação entre provas “mais fortes” e provas “mais fracas”, a partir da análise do nível de contraditório da prova. É a partir desse raciocínio que deve ser lido o artigo 155 do Código de Processo Penal, para que se possa diferenciar elementos de prova de elementos de investigação (SANTORO; TAVARES, 2020). Há que se dizer, todavia, que não importa uma elaboração, do ponto de vista epistemológico, mais fiel da sentença produzida em contraditório enquanto for possível a contaminação do juiz sentenciante pelos elementos informativos colhidos em sede de investigação preliminar.
O ativismo judicial arbitrário (pois restringiu contra legem direito fundamental), por meio do Supremo Tribunal Federal, fez paralisar a aplicação do juiz de garantias, o qual foi introduzido na dinâmica processual pela Lei n. 13.964/19, justamente para fortalecer a lógica dialética de construção do convencimento judicial, não só nos megaprocessos.
Levando em conta, portanto, que os megaprocessos são constituídos, em geral, por uma gama enorme de elementos colhidos por meio de obtenção de prova, tais como a delação premiada, a interceptação telefônica, a ação controlada e outros métodos ocultos de investigação; e, ainda, que a lógica processual em questão não se coadune com a noção de processo, respaldado pelo respeito à presunção de inocência, nota-se o claro deslocamento do eixo informativo do processo.
Tendo em vista a continuidade das pesquisas sobre o tema, é preciso ressaltar que ainda estão sendo analisadas inúmeras sentenças e denúncias proferidas no âmbito da Operação Lava Jato, com o fito de demonstrar a real dimensão do paradigma epistemológico que forma a essência dos megaprocessos e, assim, demonstrar o paralelo brasileiro com o que Luigi Ferrajoili convencionou chamar de direito penal de emergência.
Por fim, conclui-se que, ao contrário dos modelos de solução democrática, que tentam compatibilizar o direito penal e o processo penal com a lógica do Estado Democrático de Direito, os megaprocessos, na linha advertida por Ferrajoli, vêm ultrapassando limites racionais e tratam das garantias processuais como obstáculos à finalidade política repressiva, criando um verdadeiro subsistema de exceção.
REFERÊNCIAS
Comentários